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(continuaçâo) Para elucidar minha interpretação de antropofagia, que está entrelaçada com canibalismo transcultural, que permeia culturas poderosas, parasitárias e predatórias, e a devoração simbólica de indivíduos e almas como sistemas culturais, vale discutir alguns dos canibais clássicos e contemporâneos. Algumas histórias de canibalismo são plausíveis, enquanto outras não passam de ficção. A fascinação não se deve à razão pela qual as pessoas comem carne humana, mas o porquê de um grupo invariavelmente presumir que outros grupos o façam. Em algum momento da história, a designação de canibal já foi aplicada a cada grupo humano. O debate sobre o Homem de Pequim (Sinanthropus) como sendo pertencente a um povo canibal e caçador de cabeças ocorreu entre 1926 e 1941, quando foram descobertos crânios pré-históricos em escavações perto de Choukoutien, na China, que tiveram suas bases fraturadas provavelmente para permitir acesso ao cérebro. As hipóteses levantadas sugeriam que o homem pré-histórico preferia comer crus o cérebro humano e outras partes perecíveis antes de esquartejar e destrinchar a carcaça6. No século V a.C. Heródoto registrou que os andrófagos, povo nômade que vivia à margem da civilização, tinham costumes bárbaros tais como o de consumir carne humana. No século XVI, o marinheiro alemão Hans Staden, que era tripulante de um navio mercante português, ilustrou com xilogravuras sua experiência como prisioneiro dos índios tupinambás, no sudeste brasileiro. Em seu livro, Staden conta que testemunhou rituais canibalísticos durante os quais mulheres e crianças nuas mordiscavam pedaços de carne humana, enquanto a cabeça da vítima assava na fogueira. No texto que acompanha as ilustrações, o autor afirma que "o povo e a ilha descobertos pelo rei católico de Portugal . . . são nus, belos e morenos, seus corpos bem talhados . . . Eles também comem uns aos outros, até mesmo os que são assassinados, e penduram suas carnes sobre a fumaça".7 O canibalismo dos tupinambás levou também à legendária e poderosa comunidade brasileira estritamente feminina das amazonas, que manifestavam intenções agressivas e de ordem sexual com relação aos homens. Cristóvão Colombo não encontrou canibais, mas foi informado pelos índios arauaques que os caribes comiam carne humana e devoravam os cativos para apropriar-se de sua habilidade de combate. Acredita-se que, antes da colonização das Américas, os astecas participavam em massa de orgias canibalísticas durante rituais. Os órgãos e o coração ainda pulsante dos prisioneiros de guerra eram consumidos para simbolizar as forças revigorantes do mundo. A conquista espanhola deu cabo dos sacrifícios humanos e do canibalismo. No século XIX TaËunga, um polinésio nativo convertido ao cristianismo, relatou a ocorrência de canibalismo nas ilhas da Nova Caledônia. A ilustração na seção "Sobre o Canibalismo" mostra o filho de Pasan pedindo a seu pai que lhe desse homens gordos para comer. Enquanto na Europa foram registradas ocorrências de canibalismo de sobrevivência, alguns grupos de pictos, escoceses, irlandeses e russos eram conhecidos como canibais. Algumas vezes, viajantes e missionários europeus eram temidos por nativos de outras terras que os viam como canibais. A cultura judeu-cristã considerava a Eucaristia como sendo a comunhão com o sobrenatural, da mesma forma que pão e vinho simbolizam o corpo e o sangue de Cristo. A interpretação da Eucaristia·carne e fluidos corporais·levou à idéia do complexo canibal dos católicos romanos e ao pensamento fetichista relacionado com a ingestão da carne do Filho. O desejo e a procura por culturas exóticas indicavam que verdade e ficção freqüentemente se confundiam. Como resultado, os rituais simbólicos tornaram-se fascinantes devido à função e ao significado do canibalismo. A teoria do canibalismo de Lévi-Strauss, incluindo métodos de cozer e assar, pôs em evidência a prática entre grupos exo e endocanibais. As hipóteses levantam questões sobre o modo como indivíduos cozinham seus semelhantes, e sobre o cozimento como analogia à linguagem8. As trilhas canibais revelam razões mágico-religiosas para a exo e endofagia entre os aborígenes australianos, incluindo sacrifício, vingança e respeito aos mortos, enquanto os zulus acreditavam que comer a testa e as sobrancelhas de seus inimigos lhes traria coragem para enfrentar adversidades. Em Papua-Nova Guiné, atos de vingança e assassinatos entre grupos inimigos consistiam de encher a boca do inimigo com pedaços de genitália. Já os kiwai obrigavam seus jovens guerreiros a engolir o pênis do inimigo. Endofagia e canibalismo mortuário entre os Gimi eram praticados pelas parentes mulheres, que comiam o cadáver todo após cozinhá-lo no vapor, dizendo: "Venha a mim para não apodrecer no chão. Deixe que seu corpo se dissolva dentro de mim".9 Acreditava-se que o canibalismo de cadáveres masculinos praticado pelas mulheres libertava a alma dos homens e reestabelecia a androginia maternal. A disposição antropofágica dos nativos foi discutida no contexto da moléstia cerebral kuru, transmitida pela ingestão de carne humana insuficientemente cozida. Esta doença, conhecida como "morte gargalhante", provocava atos insanos tais como aquele em que enquanto o marido copulava com um cadáver feminino, sua própria mulher cortava pedaços deste corpo para assá-lo na fogueira. Na América do Norte, os índios kwakiutl realizavam seus ritos de iniciação na Dança Canibal do Inverno, quando os desejos canibalísticos e a fome primordial eram amainados e satisfeitos. Durante a cerimônia, o Dançarino Canibal estremecia seu corpo e rangia os dentes para demonstrar o apetite irresistível por carne humana. Apetite que apenas o cheiro da mãe primordial conseguia satisfazer, no momento em que um pano escaldante, embebido em sangue menstrual, era comprimido sobre seu rosto. Saciado pela fumaça sagrada desse sangue, alimento primordial, seu comportamento regredia até assemelhar-se ao de um recém-nascido10. A loucura canibalística também conhecida como "psicose de Windigo", é uma síndrome observada entre os índios algonquianos, uma aberração caracterizada pelo desejo compulsivo de comer entes amados. Fantasias de agressão oral e ocorrência de casos de fome extrema já levaram pais a comer seus filhos11. 6.Key Ray Chong, idem, p. 43“44.
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